“Precisamos ter critérios para definir o que é um autêntico pão de fermentação natural”

Sexta-feira da semana passada, 10 de novembro, tive a oportunidade de realizar uma palestra na Expo Saudavel. (www.exposaudavel.com.br)

A palestra versou sobre os Benefícios e Desafios da Fermentação Natural, desde a perspectiva das atividades de pesquisa, treinamento e divulgação que realizamos no SLOW BAKERY INSTITUTE, com o objetivo de “popularizar a fermentação natural” no pão e noutros produtos em base a massas alimentícias. (www.slowbakeryinstitute.com.br)

Ao finalizar a mesma o jornalista Guilherme Grandi, aproximou-se para realizar uma entrevista a qual pode ser lida no seguinte link. (https://www.gazetadopovo.com.br/bomgourmet/criterios-pao-de-fermentacao-natural/).

Para minha surpresa a primeira pergunta que ele propôs foi a respeito da necessidade de normatização dos pães de fermentação natural. Aspecto que não somente não tinha sido abordado na palestra senão que ao contrario, na mesma eu tinha insistido na importância da diversidade vs. a padronização dos tipos de pão, conhecimentos e métodos de produção, assim como dos significados culturais dos diferentes tipo de pães, o que pode ser lido também no nosso livro Panifesto.

 

Quando digo que fiquei surpreendido pela pergunta, falo também que foi uma surpresa positiva, porque tenho convicção que Guilherme Grandi, fazendo uso da sua sensibilidade jornalística só tem a agregar em temas tão complexos como este.

 

Por outro lado, fico grato que o jornalista na nota me coloque num patamar de autoridade da panificação. Tenho meu mérito sim, mais também bom senso para não acreditar nisso.

 

Caso fosse uma autoridade no assunto não poderia ter expressado que, “diferentemente a outros países o Brasil está atrás na normatização da panificação natural”.  

É justo dizer que o Brasil neste sentido não esta nem atrás nem na frente de quaisquer outro país, já que nenhuma legislação nacional no mundo regula e protege os pães de fermentação natural.

 

Existem sim em contrapartida varias normativas de origem publica e privada em países europeus, que registram e estabelecem normativas, sobre diferentes pães regionais tradicionais, pães com denominação de origem, alguns com e outros não necessariamente de fermentação natural.

 

Mesmo aqui no Brasil existe a normativa da ABNT/CEE 160 sobre o Pão do Dia Tipo Francês. Pão que em nossa opinião não pode ser desmerecido, já que está presente em todos os cantos do país, e perfeitamente poderia ser adequado à fermentação natural, mudando assim definitivamente o patamar de qualidade dos pães extensamente vendidos no país.

 

Acredito por outro lado que no Paraná o caminho seja outro. O estado tem tudo para ser uma região reconhecida pela qualidade dos pães, em base a suas farinhas e nas tradições dos seus imigrantes, como propomos no Panifesto: À procura do pão paranaense.  

 

Acho justo reconhecer que a ideia de uma normativa para o pão de fermentação natural foi do jornalista e não minha. Na resposta sobre a necessidade ou não de uma normativa, salientei o fato da dificuldade em estabelecer o que é ou não é um pão de fermentação natural. Para isso “precisamos ter critérios para definir o que é um autêntico pão de fermentação natural”. Mais quais seriam esses critérios? Defini-los será uma tarefa nada fácil.

 

Na resposta também expressei minhas ressalvas ao fato que toda normativa gera uma tendência à padronização, quando o que estamos propondo no Slow Bakery Institute é justamente diversidade, até porque o que estamos enxergando é uma tendência clara em Curitiba de adotar o estilo de pães da cidade de São Francisco, que pouco tem a ver com a origem sociocultural do Paraná.

 

Aqui é que entra outro ponto interessante da questão trazida a tona pelo jornalista. Às vezes as normativas trazem efeitos indesejáveis para a qualidade do produto. Como exemplo disto na entrevista mencionei que durante o período da ditadura e até começos da década de noventa do século passado, existia uma normativa com uma forte regulação estatal do setor moageiro, onde cotas de moagem de trigo para os moinhos eram estabelecidas de acordo com a sua capacidade instalada, o que resultou num foco maior na quantidade e no alto índice de extração de farinha, do que na qualidade e na diferenciação das farinhas para seu uso final. Trazendo assim um efeito contraproducente para a qualidade do produto final.

 

Por outro lado, não percebo que os pães de fermentação natural, apesar do esforço de muita gente, a até da dos médios de comunicação, tenha demonstrado um aumento vertiginoso. Ao contrario, apesar do ruído, acredito que a fermentação natural está num estágio muito incipiente, seja em volume, representatividade, como em qualidade. Basta ver a quantidade de padarias existentes na capital vs. a quantidade que oferecem estes pães, e nem se falar no interior do estado. Moda e nicho é uma coisa, penetração e volume e outra.

 

Justamente o objetivo do Slow Bakery Institute é que através da pesquisa, da divulgação e do fortalecimento do valor sensorial, nutricional, cultural e econômico da produção e consumo de pão, esta realidade mude. Esse é o grande desafio!  

 

Muitos esforços estão sendo feito pelas pessoas e empresas que de alguma maneira ou outra estão relacionadas ao mundo do pão. Só a modo de exemplo ano passado durante o dia mundial do pão, participamos junto a 29 padarias de Curitiba, numa atividade organizada pelo sindicato da panificação (SIPCEP), onde todas as padarias produziram pães de fermentação natural, prévio treinamento nas receitas escolhidas no centro técnico do sindicato. (https://www.gazetadopovo.com.br/bomgourmet/pao-sem-imposto-padarias-curitiba-dia-mundial-pao-2017/)

 

Todos estes esforços enfrentam desde nosso ponto de vista alguns desafios elencados na palestra:

 

  1. A necessidade de um controle do processo de fermentação, que melhore a qualidade dos pães de fermentação natural e evite perdas.
  2. A manutenção da diversidade cultural dos conhecimentos técnicos e métodos de produção de pão.
  3. A necessidade de medir a relação entre processo de produção e os benefícios da fermentação natural no produto final.
  4. Esclarecer e superar os mitos ao respeito da fermentação natural que não possuem fundamento técnico.  
  5. Criar condições para o desenvolvimento da fermentação natural, nos lares, nas padarias e nas indústrias.
  6. Estender os benefícios da fermentação natural para outros produtos em base a cereais, como biscoitos e massas.

 

Em resumo, gostei da pergunta, apesar que não ter certeza se é o momento de dedicar energia nisso, sobre tudo olhando as coisas com perspectiva histórica onde a fermentação natural, não é algo novo, é algo em extinção, em decadência frente a outras formas de fazer pão, muito mais eficientes e padronizadas, porém que graças aos benefícios sensoriais e nutricionais que a fermentação natural tem, conseguiu não desaparecer, e timidamente se reerguer nas suas diversas formas tradicionais, como também em diversas novas formas que tem surgido nos últimos anos.

 

Preocupa-me essa visão de tendência de mercado, por vezes bombástica e imediatista alavancada pelas mídias sociais, e às vezes pela imprensa, sem garantirmos minimamente a qualidade, para que ao experimentar um pão de fermentação natural, as pessoas sintam e apreciem a diferença. Percebida a diferença aumentarão as chances do crescimento sustentável de uma cultura de pão de qualidade.

 

Se uma normativa colaborará com esse crescimento? Pode ser sim, mas repito, se fazer uma normativa num estagio tão incipiente como o que hoje se encontram os pães de fermentação natural, será um exercício pouco produtivo, correndo o risco que no futuro se diga que foi feito lá trás e por uns poucos. Insisto que chegado o momento de maturidade, uma normativa deveria ser elaborada em conjunto com todos os interessados, desde os produtores de matéria prima, os moinhos, os padeiros do lar, das padarias e das indústrias, autoridades privadas e estatais, imprensa, profissionais da área da saúde, entre outros, com o objetivo de garantir a qualidade, a diversidade, o crescimento e a consolidação da fermentação natural.

 

Obrigado ao jornalista Guilherme Grandi, por contribuir no debate da cultura do pão, e ao Bom Gourmet da Gazeta do Povo por destacar consistentemente o pão com fermentação natural, os seus diferentes atores, premiar nos últimos anos as padarias que realizam sua produção com estes antigos métodos de produção que estão em constante evolução e sonhamos que no futuro voltem a predominar na produção de pão.  

slowbakeryinstitute

Um espaço interpretativo da CULTURA DO PÃO, concebido para a confraternização, compartilhamento, divulgação, reflexão, debate, pesquisa e treinamento.

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